quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O Homem Que Queria Ser Beethoven

por Hariel Gaspar


29 de março de 1827. Um fim de tarde chuvoso, uma fileira de pessoas com roupas pretas seguindo um rabecão. O primeiro da fileira era o sacerdote, que caminhava rezando e as pessoas o acompanhavam naquela caminhada fúnebre até que um grande portão de ferro anuncia que chegaram ao destino: O cemitério da cidade.
O coveiro os aguardavam com uma pá na mão e todos se reuniram em volta da cova que ele acabara de fazer. O sacerdote fazia uma oração enquanto homens colocavam o caixão por meio de cordas e roldanas. Ele da sua última palavra e o o coveiro vai cobrindo o caixão com punhados de terra. Parecia um funeral comum, parecia que o falecido não tinha muitos amigos, ou familiares. As pessoas se comportavam como se fosse o funeral de um desconhecido. Apenas um homem entre eles  parecia realmente estar sentido, com lágrimas nos olhos ele olha tudo aquilo como se não acreditasse. Seu nome era Frederic. A cova é toda coberta e colocam a lápide com o nome do recém falecido, Ludwig Van Beethoven (1770 – 1827), todos vão embora caminhando lentamente de cabeça baixa, mas Frederic é o único que fica ali por muito tempo, observa o túmulo, passa a mão na lápide, então o coveiro lhe chama e diz que o cemitério está prestes a fechar, se não fosse por  esse aviso ele poderia passar o resto do dia ali. Então ele agradece e sai dali, de cabeça baixa, e retorna para sua casa, retorna a sua vida solitária, retorna e passa a tocar o resto da noite o seu piano, o seu maior companheiro, toca musicas tristes, pois uma parte de Frederic  acaba de morrer.
Frederic era um médico cirurgião, aliás, um ótimo cirurgião. Nas horas vagas o que mais gostava de fazer era tocar seu piano de calda. Apesar de ser muito elogiado pelo seu trabalho não se gabava muito, sempre dizia que antes de um excelente médico cirurgião ele era um músico frustrado. Sempre quis ser músico, tocava piano desde os seus 10 anos de idade, mas nunca conseguiu se sobressair como músico. Ele era muito fã de Beethoven, o via tocar  em concertos, se inspirava nesse homem, estava em todos os seus concertos, na primeira fila, ele sempre dizia que Beethoven é o que ele nunca conseguiu ser na vida. Já chegou até a falar com ele, apesar de Beethoven nunca dar muita bola a seus fãs, mas só de estar na presença dele, Frederic já se sentia honrado. A notícia da morte de seu maior ídolo foi um grande baque para ele, e pensar em Beethoven o fazia passar as noites tocando com muito mais freqüência, as vezes virava a noite tocando e treinando e tentando compor, por passar noites sem dormir ele ia pro trabalho com muito mal humor.
Em uma das noites que treinava e pensava em Beethoven e em como não conseguiu ser reconhecido como um ótimo músico como seu ídolo, Frederic se enfurecia e tocava cada vez mais rápido até chegar um instante em que começou a socar as teclas com os punhos, abaixou a cabeça e, em seu íntimo, desejou muito ter as mesmas habilidades que seu ídolo, que pareciam ter mãos abençoadas, de repente teve uma idéia um tanto bizarra, a principio ficou perturbado, mas a sua raiva e frustração falou mais alto e como ele era muito um bom cirurgião essa função iria lhe ajudar muito nessa idéia não muito comum, a partir dessa idéia sua vida iria sofrer uma mudança repentina, mas não tinha noção que seria o maior erro de toda sua vida.                                                           
Voltou do trabalho já com a ideia na cabeça. Iria fazer isso naquele mesmo dia, e nada o iria impedir. Ao chegar em casa arrumou a mesa, cobriu –a com uma pano, abriu sua mala e organizou todos os seus utensílios cirúrgicos e colocou-os em ordem. Colocou também sobre a mesa um vidrinho com pílulas anestésicas, pegou sua mala vazia e colocou apenas uma pequena guilhotina muito afiada e um pano dobrado, fechou a mala, segurou-a firme, respirou fundo e saiu de casa em sentido ao cemitério da cidade. Chegou e deu de cara com o enorme portão fechado, o que já imaginava devido ao horário. Ficou esperando  em frente quando o coveiro foi até ele para dizer que já estava fechado, para voltar no dia seguinte. Frederic insistiu muito até chegar a ponto de o pagar para poder abrir uma exceção e deixá-lo entrar, foi uma quantia alta, o coveiro disse para chamá-lo na hora em que fosse embora, para abrir o portão novamente. Voltou a sua casa que ficava nos fundos e Frederic seguiu seu caminho pelo cemitério. Nunca tinha ido nesse lugar a noite, o vento balançando as árvores, estátuas de anjos e gárgulas pareciam bem mais assustadores quando de dia, caminhou até chegar ao tumulo de Beethoven, pegou uma pá que provavelmente pertencia a aquele coveiro e começou a cavar, cavar até aparecer o caixão, era realmente um trabalho cansativo pensou, assim que o buraco ficou realmente fundo e o caixão apareceu ele juntou forças pra abrir aquela enorme tampa, e conseguiu, ficou de pé, pegou a mala que deixou ao lado enquanto cavava, pegou a pequena guilhotina, ficou um tempo olhando com muito medo para aquele cadáver recém enterrado, e por um instante pensou em como poderia ter pensado nisso, nessa idéia tão macabra, mas por fim acabou fazendo o que tinha que fazer.  Pegou os dois braços do morto, primeiro o braço direito, colocou apenas a mão na guilhotina, empurrou a lâmina pra baixo, decepou a mão direita do morto, e depois fez o mesmo com o braço esquerdo, ficou olhando pra aqueles dois pedaços de tecido morto, contemplando por um momento. Os enrolou no pano e colocou-os com cuidado dentro da mala junto com a guilhotina, colocou os braços dentro do caixão, e tampou-os novamente. Quando foi tentar subir um pedaço da terra desabou e caiu novamente em cima do caixão. Nesse exato momento ouviu um relâmpago, por um momento pensou que fosse um sinal, ou o morto não querendo deixá-lo ir embora com parte de seus membros, mas logo subiu novamente e conseguiu sair. Tinha que cobrir a cova novamente, olhou a sua volta pra certificar que não tinha ninguém vendo aquilo, ou pensariam que ele é um ghoul (criatura lendaria que se alimenta de cadáveres­)­ . Cobriu a cova, pegou a mala e foi chamar o coveiro para abrir o portão. O coveiro perguntou pra ele o porque de estar com as roupas sujas de terra, ele disse que na volta escorregou e caiu na terra, mas que estava tudo bem.
Ao chegar em casa abriu a mala, tirou o pano com as mãos embaladas, tirou a guilhotina e começou a segunda parte do seu plano. Preparou seringas com anestésico, colocou sua mão esquerda na guilhotina, suou frio, mas já havia chegado longe demais, não iria desistir.  Abaixou a lamina de uma só vez e decepou sua mão esquerda. No momento não sentiu dor alguma, mas ele já estava preparado, estancou  sangue, depois de alguns minutos começou a doer, uma dor horrível, com sua mão direita desenrolou as ataduras e aplicou injeções de anestésicos dentro do toco do seu braço. Agora era hora da parte mais trabalhosa, tinha que ter o máximo de atenção. Colocou seus óculos, pegou alguns utensílios, e aos poucos foi costurando, ligando nervos da mão morta ao do seu braço, com muita atenção mas com bastante agilidade, pois já estava acostumado a fazer esse tipo de cirurgia. Começou a doer novamente e ele aplicou mais uma dose de anestésico. Estava pronto, conseguiu movimentar a nova mão normalmente. Depois de doses de anestésico ele fez o mesmo com a mão direita. Passou a noite inteira nessa cirurgia macabra, e quando acabou ele pode contemplar seu trabalho, ficou olhando para as suas novas mãos. A princípio a única coisa que enxergava eram  duas mãos horríveis, amareladas, com algumas manchas, as unhas tinham uma cor esverdeada. Sua mesa estava uma verdadeira bagunça, muito suja de sangue, não tinha tempo pra limpar agora. Foi ao piano para tocar alguma musica com suas novas mãos, a princípio tocou normalmente, nada demais, chegou até a pensar que não iria dar certo, mas então foi surpreendido quando de repente suas novas mãos parecia ter vida própria. Deslizavam sobre as teclas do piano, tocava como jamais tocou em toda sua vida, aquela era a melhor coisa que ele havia feito. Tocava e escutava aquilo com lágrimas nos olhos, passou a noite tocando e contemplando tudo aquilo.
Com o passar dos dias ele não fazia nada além de passar dias tocando. Desde aquela noite ele não voltou ao seu trabalho, o cheiro daquele pedaço de tecido morto era insuportável, ele tinha que freqüentemente passar formol nas duas mãos, estava tão encantado com aquilo tudo que nem o cheiro de formol o incomodava. Enfim chamou alguns contatos do meio musical para o ver tocar. Todos eles ficaram realmente encantados com tudo aquilo, parecia que suas mãos naquele instrumento faziam mágica, ficaram tão encantados que resolveram marcar um concerto no teatro da cidade o quanto antes, queriam mostrar ao povo daquela cidade um novo talento.
Chegou o grande dia do seu concerto. O teatro estava cheio, mas a multidão não estava  muito confiante sobre o novo pianista. Frederic colocou luvas para disfarçar a aparência horrível de suas mãos. Enfim chegou a hora, o concerto começou. Deixou suas mãos fazer a mágica. No começo o povo da platéia não ligou muito, mas com apenas 20 minutos de concerto estavam todos maravilhados, algumas senhoras com lágrimas nos olhos. Quando o concerto chegou ao fim ele foi surpreendido por uma enorme salva de palmas, encheu os olhos de lágrimas, pois enfim estava recebendo o reconhecimento que tanto quis.
Com o verdadeiro espetáculo de sua primeira apresentação no teatro da cidade, sua fama logo se espalhou e foi convidado mais vezes pra tocar naquele teatro, e sua próxima apresentação teria a ilustre presença do prefeito da cidade e alguns nomes importantíssimos do ramo musical na platéia. Ele estava muito ansioso, afinal dessa vez ele estava indo realmente longe. Tocou seu piano a noite e foi dormir pensando no concerto do próximo dia.
Ao amanhecer, percebeu que estava sentindo dores bem na parte costurada do seus dois pulsos. A princípio achou isso normal e aplicou umas doses de anestésicos, tocou um pouco pela manhã mas a dor não parava, parecia que a anestesia não fazia mais efeito."Mas não é possível", pensou. Sempre usou aquele medicamento, era um anestésico muito forte, as dores começaram a piorar mesmo, ele tomou algumas pílulas e resolveu tirar um cochilo. "Deve ser porque eu tenho treinado muito",  ele pensou. Ao acordar a tarde percebeu que estava ardendo em febre, e as dores nos pulsos tinham piorado, bem onde tinha os pontos que costuravam as mãos, a febre era tanta que ele mal conseguia parar em pé, mas ele não podia faltar a esse concerto de jeito nenhum, nem que vá com febre e morrendo de dor, não podia desapontar seus fãs, já estava quase na hora, foi tomar seu banho. Ao sair do banho, quando já estava quase pronto colocando seus sapatos ele percebeu que bem na costura dos pulsos os pontos estavam quase arrebentando, e saia um liquido vermelho escuro, como sangue pisado, e a dor realmente não parava, ele não estava mais agüentando de dor quando por impulso ele deu um grito se jogou de joelhos no chão, ficou olhando pra aquilo e gritava cada vez mais alto, gritava muito, gritava e suplicava pra aquilo parar, ele suava muito, e os pulsos dele sangravam cada vez mais. Quando começou a trovejar, a trovejar muito, sobre a casa de Frederic pairava uma enorme nuvem negra. Relampejava  e ventava muito também. Aquela dor, aquele barulho de trovões, aquele vento forte, aquela visão horrível de sangue pisado manchando todo seu terno, tudo aquilo vindo de uma vez ele não agüentou e gritou: “MEU DEEEEEEEEEUS”. Gritou em vão, pois a força divina não podia intervir no que estava prestes a acontecer. De repente  sentiu as duas mãos indo pra frente como num puxão, os pontos que tinham no pulso começaram a arrebentar e aquela dor aumentava quando todos os pontos se arrebentaram e as mãos pularam pra frente como se tivessem vida própria. Frederic ficou ali, jogado no chão, olhando pra aqueles dois tocos do seu pulso, ensangüentados, então aquelas mãos pularam em cima do teclado e começam a tocar uma melodia fúnebre, ele olhava aquilo mas não acreditava, duas mãos, tocando sozinhas, era tão fúnebre que não causava um prazer, uma sensação de tranqüilidade como toda musica no piano nos causa, mas causava dor, de repente as mãos saltaram do piano pro chão, e correram em direção ao Frederic ali jogado no chão gritando, elas param em sua frente, as duas mãos agarraram seu cabelo e começou a arrastá-lo por toda a sala, ele não conseguia fazer nada, pois estava sem as mãos, as mãos o arrastavam e  jogava-o em cima da mesa, depois o agarrou de novo e o levou arrastado até seu piano, deixou ele suspenso pelo colarinho olhando para aquele piano, em sua mente ele suplicava pra que tudo isso acabasse logo, então uma das mãos saltou sobre o piano, abriu a tampa de cima enquanto a outra mão colocava sua cabeça na parte de dentro enquanto a outra mão erguia e abaixava a tampa, dando fortes golpes em sua cabeça, ela sangrava muito, até que seus olhos ficaram tão arregalados que parecia que iriam sair de órbita, ele ficou com um olhar vidrado, uma das mãos tocava com seus dedos o sangue de Frederic e pulou na parede e começou a escrever alguma coisa na parede que fica de frente para o piano.
O dono do teatro estava muito bravo, pois Frederic estava a 1 hora e meia atrasado e toda a platéia gritava, querendo o dinheiro de volta. Então o dono resolveu ir pessoalmente até a casa dele. Chegando lá,chamou.  Viu que ninguém atendia, mas a porta estava aberta. Resolveu entrar. Continuou chamando, mas ninguém respondia, havia um silêncio, um silêncio mórbido pairava naquela casa. Quando chegou na sala ficou em estado de choque ao ver Frederic com a cabeça dentro do piano e a sala inteira suja de sangue, e percebeu que havia uma mensagem escrito a dedo com sangue na parede:
AQUI JAZ O INFELIZ QUE QUERIA SER AQUILO QUE NÃO ERA E PAGOU CARO POR ISSO.
Enquanto isso as mãos caminhavam em direção ao cemitério, ao túmulo de Beethoven, de onde nunca, jamais, deveriam ter saído. 




Vila dos Contos - O Homem que queria ser Beethoven
de Hariel Gaspar.

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