quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O Homem Que Queria Ser Beethoven

por Hariel Gaspar


29 de março de 1827. Um fim de tarde chuvoso, uma fileira de pessoas com roupas pretas seguindo um rabecão. O primeiro da fileira era o sacerdote, que caminhava rezando e as pessoas o acompanhavam naquela caminhada fúnebre até que um grande portão de ferro anuncia que chegaram ao destino: O cemitério da cidade.
O coveiro os aguardavam com uma pá na mão e todos se reuniram em volta da cova que ele acabara de fazer. O sacerdote fazia uma oração enquanto homens colocavam o caixão por meio de cordas e roldanas. Ele da sua última palavra e o o coveiro vai cobrindo o caixão com punhados de terra. Parecia um funeral comum, parecia que o falecido não tinha muitos amigos, ou familiares. As pessoas se comportavam como se fosse o funeral de um desconhecido. Apenas um homem entre eles  parecia realmente estar sentido, com lágrimas nos olhos ele olha tudo aquilo como se não acreditasse. Seu nome era Frederic. A cova é toda coberta e colocam a lápide com o nome do recém falecido, Ludwig Van Beethoven (1770 – 1827), todos vão embora caminhando lentamente de cabeça baixa, mas Frederic é o único que fica ali por muito tempo, observa o túmulo, passa a mão na lápide, então o coveiro lhe chama e diz que o cemitério está prestes a fechar, se não fosse por  esse aviso ele poderia passar o resto do dia ali. Então ele agradece e sai dali, de cabeça baixa, e retorna para sua casa, retorna a sua vida solitária, retorna e passa a tocar o resto da noite o seu piano, o seu maior companheiro, toca musicas tristes, pois uma parte de Frederic  acaba de morrer.
Frederic era um médico cirurgião, aliás, um ótimo cirurgião. Nas horas vagas o que mais gostava de fazer era tocar seu piano de calda. Apesar de ser muito elogiado pelo seu trabalho não se gabava muito, sempre dizia que antes de um excelente médico cirurgião ele era um músico frustrado. Sempre quis ser músico, tocava piano desde os seus 10 anos de idade, mas nunca conseguiu se sobressair como músico. Ele era muito fã de Beethoven, o via tocar  em concertos, se inspirava nesse homem, estava em todos os seus concertos, na primeira fila, ele sempre dizia que Beethoven é o que ele nunca conseguiu ser na vida. Já chegou até a falar com ele, apesar de Beethoven nunca dar muita bola a seus fãs, mas só de estar na presença dele, Frederic já se sentia honrado. A notícia da morte de seu maior ídolo foi um grande baque para ele, e pensar em Beethoven o fazia passar as noites tocando com muito mais freqüência, as vezes virava a noite tocando e treinando e tentando compor, por passar noites sem dormir ele ia pro trabalho com muito mal humor.
Em uma das noites que treinava e pensava em Beethoven e em como não conseguiu ser reconhecido como um ótimo músico como seu ídolo, Frederic se enfurecia e tocava cada vez mais rápido até chegar um instante em que começou a socar as teclas com os punhos, abaixou a cabeça e, em seu íntimo, desejou muito ter as mesmas habilidades que seu ídolo, que pareciam ter mãos abençoadas, de repente teve uma idéia um tanto bizarra, a principio ficou perturbado, mas a sua raiva e frustração falou mais alto e como ele era muito um bom cirurgião essa função iria lhe ajudar muito nessa idéia não muito comum, a partir dessa idéia sua vida iria sofrer uma mudança repentina, mas não tinha noção que seria o maior erro de toda sua vida.                                                           
Voltou do trabalho já com a ideia na cabeça. Iria fazer isso naquele mesmo dia, e nada o iria impedir. Ao chegar em casa arrumou a mesa, cobriu –a com uma pano, abriu sua mala e organizou todos os seus utensílios cirúrgicos e colocou-os em ordem. Colocou também sobre a mesa um vidrinho com pílulas anestésicas, pegou sua mala vazia e colocou apenas uma pequena guilhotina muito afiada e um pano dobrado, fechou a mala, segurou-a firme, respirou fundo e saiu de casa em sentido ao cemitério da cidade. Chegou e deu de cara com o enorme portão fechado, o que já imaginava devido ao horário. Ficou esperando  em frente quando o coveiro foi até ele para dizer que já estava fechado, para voltar no dia seguinte. Frederic insistiu muito até chegar a ponto de o pagar para poder abrir uma exceção e deixá-lo entrar, foi uma quantia alta, o coveiro disse para chamá-lo na hora em que fosse embora, para abrir o portão novamente. Voltou a sua casa que ficava nos fundos e Frederic seguiu seu caminho pelo cemitério. Nunca tinha ido nesse lugar a noite, o vento balançando as árvores, estátuas de anjos e gárgulas pareciam bem mais assustadores quando de dia, caminhou até chegar ao tumulo de Beethoven, pegou uma pá que provavelmente pertencia a aquele coveiro e começou a cavar, cavar até aparecer o caixão, era realmente um trabalho cansativo pensou, assim que o buraco ficou realmente fundo e o caixão apareceu ele juntou forças pra abrir aquela enorme tampa, e conseguiu, ficou de pé, pegou a mala que deixou ao lado enquanto cavava, pegou a pequena guilhotina, ficou um tempo olhando com muito medo para aquele cadáver recém enterrado, e por um instante pensou em como poderia ter pensado nisso, nessa idéia tão macabra, mas por fim acabou fazendo o que tinha que fazer.  Pegou os dois braços do morto, primeiro o braço direito, colocou apenas a mão na guilhotina, empurrou a lâmina pra baixo, decepou a mão direita do morto, e depois fez o mesmo com o braço esquerdo, ficou olhando pra aqueles dois pedaços de tecido morto, contemplando por um momento. Os enrolou no pano e colocou-os com cuidado dentro da mala junto com a guilhotina, colocou os braços dentro do caixão, e tampou-os novamente. Quando foi tentar subir um pedaço da terra desabou e caiu novamente em cima do caixão. Nesse exato momento ouviu um relâmpago, por um momento pensou que fosse um sinal, ou o morto não querendo deixá-lo ir embora com parte de seus membros, mas logo subiu novamente e conseguiu sair. Tinha que cobrir a cova novamente, olhou a sua volta pra certificar que não tinha ninguém vendo aquilo, ou pensariam que ele é um ghoul (criatura lendaria que se alimenta de cadáveres­)­ . Cobriu a cova, pegou a mala e foi chamar o coveiro para abrir o portão. O coveiro perguntou pra ele o porque de estar com as roupas sujas de terra, ele disse que na volta escorregou e caiu na terra, mas que estava tudo bem.
Ao chegar em casa abriu a mala, tirou o pano com as mãos embaladas, tirou a guilhotina e começou a segunda parte do seu plano. Preparou seringas com anestésico, colocou sua mão esquerda na guilhotina, suou frio, mas já havia chegado longe demais, não iria desistir.  Abaixou a lamina de uma só vez e decepou sua mão esquerda. No momento não sentiu dor alguma, mas ele já estava preparado, estancou  sangue, depois de alguns minutos começou a doer, uma dor horrível, com sua mão direita desenrolou as ataduras e aplicou injeções de anestésicos dentro do toco do seu braço. Agora era hora da parte mais trabalhosa, tinha que ter o máximo de atenção. Colocou seus óculos, pegou alguns utensílios, e aos poucos foi costurando, ligando nervos da mão morta ao do seu braço, com muita atenção mas com bastante agilidade, pois já estava acostumado a fazer esse tipo de cirurgia. Começou a doer novamente e ele aplicou mais uma dose de anestésico. Estava pronto, conseguiu movimentar a nova mão normalmente. Depois de doses de anestésico ele fez o mesmo com a mão direita. Passou a noite inteira nessa cirurgia macabra, e quando acabou ele pode contemplar seu trabalho, ficou olhando para as suas novas mãos. A princípio a única coisa que enxergava eram  duas mãos horríveis, amareladas, com algumas manchas, as unhas tinham uma cor esverdeada. Sua mesa estava uma verdadeira bagunça, muito suja de sangue, não tinha tempo pra limpar agora. Foi ao piano para tocar alguma musica com suas novas mãos, a princípio tocou normalmente, nada demais, chegou até a pensar que não iria dar certo, mas então foi surpreendido quando de repente suas novas mãos parecia ter vida própria. Deslizavam sobre as teclas do piano, tocava como jamais tocou em toda sua vida, aquela era a melhor coisa que ele havia feito. Tocava e escutava aquilo com lágrimas nos olhos, passou a noite tocando e contemplando tudo aquilo.
Com o passar dos dias ele não fazia nada além de passar dias tocando. Desde aquela noite ele não voltou ao seu trabalho, o cheiro daquele pedaço de tecido morto era insuportável, ele tinha que freqüentemente passar formol nas duas mãos, estava tão encantado com aquilo tudo que nem o cheiro de formol o incomodava. Enfim chamou alguns contatos do meio musical para o ver tocar. Todos eles ficaram realmente encantados com tudo aquilo, parecia que suas mãos naquele instrumento faziam mágica, ficaram tão encantados que resolveram marcar um concerto no teatro da cidade o quanto antes, queriam mostrar ao povo daquela cidade um novo talento.
Chegou o grande dia do seu concerto. O teatro estava cheio, mas a multidão não estava  muito confiante sobre o novo pianista. Frederic colocou luvas para disfarçar a aparência horrível de suas mãos. Enfim chegou a hora, o concerto começou. Deixou suas mãos fazer a mágica. No começo o povo da platéia não ligou muito, mas com apenas 20 minutos de concerto estavam todos maravilhados, algumas senhoras com lágrimas nos olhos. Quando o concerto chegou ao fim ele foi surpreendido por uma enorme salva de palmas, encheu os olhos de lágrimas, pois enfim estava recebendo o reconhecimento que tanto quis.
Com o verdadeiro espetáculo de sua primeira apresentação no teatro da cidade, sua fama logo se espalhou e foi convidado mais vezes pra tocar naquele teatro, e sua próxima apresentação teria a ilustre presença do prefeito da cidade e alguns nomes importantíssimos do ramo musical na platéia. Ele estava muito ansioso, afinal dessa vez ele estava indo realmente longe. Tocou seu piano a noite e foi dormir pensando no concerto do próximo dia.
Ao amanhecer, percebeu que estava sentindo dores bem na parte costurada do seus dois pulsos. A princípio achou isso normal e aplicou umas doses de anestésicos, tocou um pouco pela manhã mas a dor não parava, parecia que a anestesia não fazia mais efeito."Mas não é possível", pensou. Sempre usou aquele medicamento, era um anestésico muito forte, as dores começaram a piorar mesmo, ele tomou algumas pílulas e resolveu tirar um cochilo. "Deve ser porque eu tenho treinado muito",  ele pensou. Ao acordar a tarde percebeu que estava ardendo em febre, e as dores nos pulsos tinham piorado, bem onde tinha os pontos que costuravam as mãos, a febre era tanta que ele mal conseguia parar em pé, mas ele não podia faltar a esse concerto de jeito nenhum, nem que vá com febre e morrendo de dor, não podia desapontar seus fãs, já estava quase na hora, foi tomar seu banho. Ao sair do banho, quando já estava quase pronto colocando seus sapatos ele percebeu que bem na costura dos pulsos os pontos estavam quase arrebentando, e saia um liquido vermelho escuro, como sangue pisado, e a dor realmente não parava, ele não estava mais agüentando de dor quando por impulso ele deu um grito se jogou de joelhos no chão, ficou olhando pra aquilo e gritava cada vez mais alto, gritava muito, gritava e suplicava pra aquilo parar, ele suava muito, e os pulsos dele sangravam cada vez mais. Quando começou a trovejar, a trovejar muito, sobre a casa de Frederic pairava uma enorme nuvem negra. Relampejava  e ventava muito também. Aquela dor, aquele barulho de trovões, aquele vento forte, aquela visão horrível de sangue pisado manchando todo seu terno, tudo aquilo vindo de uma vez ele não agüentou e gritou: “MEU DEEEEEEEEEUS”. Gritou em vão, pois a força divina não podia intervir no que estava prestes a acontecer. De repente  sentiu as duas mãos indo pra frente como num puxão, os pontos que tinham no pulso começaram a arrebentar e aquela dor aumentava quando todos os pontos se arrebentaram e as mãos pularam pra frente como se tivessem vida própria. Frederic ficou ali, jogado no chão, olhando pra aqueles dois tocos do seu pulso, ensangüentados, então aquelas mãos pularam em cima do teclado e começam a tocar uma melodia fúnebre, ele olhava aquilo mas não acreditava, duas mãos, tocando sozinhas, era tão fúnebre que não causava um prazer, uma sensação de tranqüilidade como toda musica no piano nos causa, mas causava dor, de repente as mãos saltaram do piano pro chão, e correram em direção ao Frederic ali jogado no chão gritando, elas param em sua frente, as duas mãos agarraram seu cabelo e começou a arrastá-lo por toda a sala, ele não conseguia fazer nada, pois estava sem as mãos, as mãos o arrastavam e  jogava-o em cima da mesa, depois o agarrou de novo e o levou arrastado até seu piano, deixou ele suspenso pelo colarinho olhando para aquele piano, em sua mente ele suplicava pra que tudo isso acabasse logo, então uma das mãos saltou sobre o piano, abriu a tampa de cima enquanto a outra mão colocava sua cabeça na parte de dentro enquanto a outra mão erguia e abaixava a tampa, dando fortes golpes em sua cabeça, ela sangrava muito, até que seus olhos ficaram tão arregalados que parecia que iriam sair de órbita, ele ficou com um olhar vidrado, uma das mãos tocava com seus dedos o sangue de Frederic e pulou na parede e começou a escrever alguma coisa na parede que fica de frente para o piano.
O dono do teatro estava muito bravo, pois Frederic estava a 1 hora e meia atrasado e toda a platéia gritava, querendo o dinheiro de volta. Então o dono resolveu ir pessoalmente até a casa dele. Chegando lá,chamou.  Viu que ninguém atendia, mas a porta estava aberta. Resolveu entrar. Continuou chamando, mas ninguém respondia, havia um silêncio, um silêncio mórbido pairava naquela casa. Quando chegou na sala ficou em estado de choque ao ver Frederic com a cabeça dentro do piano e a sala inteira suja de sangue, e percebeu que havia uma mensagem escrito a dedo com sangue na parede:
AQUI JAZ O INFELIZ QUE QUERIA SER AQUILO QUE NÃO ERA E PAGOU CARO POR ISSO.
Enquanto isso as mãos caminhavam em direção ao cemitério, ao túmulo de Beethoven, de onde nunca, jamais, deveriam ter saído. 




Vila dos Contos - O Homem que queria ser Beethoven
de Hariel Gaspar.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A Última Vez Que Tocamos Piano



por  L.Stranger




 Havia trancado todas as portas. Apagado todas as luzes e deixado acesas apenas as lamparinas. Aquele era o lugar em que eu gostava de estar, e ali eu tocava piano junto a Alice todas as noites desde que nos casamos.
Eu havia posto meu terno favorito e passara a última hora inteira sentado diante daquele, enquanto Alice estava deitada na cama com seu vestido branco e seu rosto lindo, branco, pálido, morto.
Fiz tudo que pude para evitar, mas não consegui, e então quando nada mais podia ser feito a levei para o salão, a coloquei em seu vestido favorito e a penteei. Enfim a deitei na cama. Da estante cheia de livros retirei alguns dos que mais gostávamos e os coloquei sobre a mesa, sentei diante do piano negro e me coloquei a tocar.
E assim Alice parecia apenas em um sono lindo enquanto eu tocava as músicas que ela mais gostava. De agora em diante eu teria minha noite de despedida com o grande amor da minha vida.
Quando o relógio anunciou às nove da noite eu me levantei do piano, abri uma das portas e fui até a adega, busquei minha garrafa de vinho e de uísque favoritas e as trouxe para o salão. Tranquei novamente a porta e pus-me a ler em voz alta alguns poemas e trechos dos livros que escolhera enquanto bebia.
Abri as janelas do grande saguão quando li “O Corvo” de Edgar Allan Poe, me senti como o personagem do poema que acaba de perder a sua amada, e a fiquei olhando por minutos a espera de um corvo que nunca apareceu. A cada segundo que se passava Alice me parecia mais distante de mim, mais branca e mais silenciosa.
Foi quando voltei a tocar piano que derramei a primeira lágrima por Alice e me veio o primeiro momento em que me senti angustiado. Fui até Alice com o copo de uísque na mão. Seu rosto morto não era de maneira alguma menos belo, e sua boca apresentava-se mais rosada que de costume, como que me chamando, me pedindo um beijo derradeiro, um beijo que pudesse trazê-la de volta a vida, e então lhe cedi uma última dose de uísque, e depois senti em um beijo o gosto amargo da mistura do uísque com a morte, um beijo que foi o mais longo e apaixonado que já lhe cedi.
O Salão era um lugar ideal para uma despedida, porém uma despedida não era uma ocasião ideal para aquele salão. Eu pouco sabia como separar os momentos de clareza e dor que surgiam com os momentos de inocência que o salão me trazia. O piano, nosso maior amor em comum, era dor e era remédio, era o que fazer para disfarçar.
Eu tomei um golpe da vida. Quando pensei que a felicidade fosse passar da forma de promessa para a forma de realidade, quando pensei que a promessa de uma vida feliz havia se transformado em uma vida realmente feliz, a velha promessa de que o final é uma desgraça me veio, e eu pouco esperava que o final era o que para mim parecia ser o meio.
Todo meu respeito e todas minhas faculdades conquistadas agora faziam de mim mais desgraçados que outrora, as gotas de lágrimas vinham mais rapidamente e a jovem mais bela que conheci não me dariam mais sequer uma dança se não a dança de uma vida maldita.
Um vento soprou pela janela aberta e eu tive um devaneio sentado diante do piano. Não sei se esse devaneio durou dez segundo ou dez minutos, mas ele foi o tudo que me passou de concreto desde a então morte de Alice.
Foi então que resolvi chamar os únicos amigos que tínhamos. Já me sentia meio alto e não sabia ao certo que horas eram quando peguei o telefone e liguei para Augusto.
Este crescera ao meu lado, aprendeu suas primeiras palavras quando aprendi também as minhas. Se formou quando eu também o fiz, conheceu Alice na mesma noite que eu, e temo dizer que se apaixonou por ela também no mesmo segundo que eu.
Quando o telefonei ele estava a dormir, mas Elisabeth sua recém esposa e melhor amiga de Alice o fez questão de acordar. O convidei para que viesse a minha casa, e mesmo já não sendo horários para visitas concordou e me pediu alguns minutos.
Ao fim do telefonema percebi que minhas lágrimas cessaram um pouco, e isso era o que deveria acontecer, uma vez que eu não queria que Augusto soubesse da morte de Alice. Isso me renderia explicações e explicações e por hora não era o que eu queria.
Não me lembro quanto tempo fiquei ao piano até que Augusto chegasse ao portão.

II

Augusto chegara com um vinho na mão e dois envelopes que me despertaram curiosidade assim que bati meus olhos sobre eles.
Sentamos na sala um pouco, e logo ele me contara o que eram aqueles envelopes. Eram duas passagens para uma viagem com Elisabeth. Era enfim a lua de mel do casal, que tiveram as núpcias canceladas pela morte do pai de Elisabeth logo após o casamento.
Era uma surpresa, e assim que soube entendi o porquê do aceitar de Augusto sem maiores interrogações, Augusto queria dividir seu momento feliz comigo, como bom amigo que era, assim como que queria dividir com ele meu momento.
O contraste era claro, eu me segurava para não derramar lágrimas enquanto via Augusto nos céus a contar sobre tudo que pretendia fazer na viagem, e depois na volta dela.
Depois de alguns minutos na sala pedi a Augusto que me acompanha-se até o salão para que continuássemos ali as nossas conversas.
_Alice esta a dormir, anda meio fraca, uma série de enjôos, íamos sair para jantar, porém optamos pelo seu descanso.
Continuamos a conversar, porém em tom de voz mais baixo. Augusto não queria acordá-la. Abrimos o vinho de meu amigo, eu sentado no piano e ele na cadeira de frente a mim.
E ficamos a conversar sobre assuntos variados; seu casamento, suas viagens, a quantas andava aquele frio novembro. Eu conhecera Augusto desde sempre, e isso me ajudava a notar coisas que poucos conseguiriam. Seu casamento era uma farça acomodada. O fazia feliz apenas pelo fato de não estar a sós, enquanto eu e todos os mais conhecidos dele já estavam casados.
Lisa, assim era chamada, era uma mulher espetacular, cheia de dotes e talentos múltiplos. Bela e inteligente, de boa família e amava Augusto, mas aquilo não parecia o suficiente para meu amigo. Não para ele.
Nunca Augusto havia me dito qualquer coisa sobre isso, mas eu sabia, assim como eu sabia que ele amava Alice sem mesmo ele nunca ter me dito nada.
Era como uma certeza de no mínimo sete, quando se pode chegar a dez, ou ficar no zero.
Ao fim da garrafa que Augusto trouxe me levantei e fui até a porta do quarto. Meus olhos já não estavam agüentando o disfarce, deixei uma lágrima escapar sem que meu amigo percebe-se, porém precisava sair e chorar, ao menos por alguns segundos eu precisava.
_Lembrei me de um vinho, que havia separado para um ocasião especial. E sua enfim lua-de-mel é especial o bastante, vou até a adega buscá-la.
E assim fui até a adega parando em frente a mesa da cozinha e chorando, agora pela primeira vez chorando muito. Não apenas lágrimas soltas e sim uma chuva de dor. Augusto estava a sós com Helena e aquilo era perigoso, qualquer suspeita de Augusto me poria em maus lençóis por não ter contado antes.
Ao buscar o vinho me lembrei das duas taças que Alice e eu sempre usávamos em ocasiões especiais. Usamos no nosso casamento e desde então em todos os momentos mais felizes que tivemos juntos. Era a hora de usá-las pela ultima vez e Augusto era a pessoa mais merecedora a usá-las comigo
Enquanto pegava as taças lembrei-me de Alice viva, das vezes que usamos as taças, lembrei-me do sofrimento cotidiano silencioso de Augusto, do meu sofrimento silencioso de agora, lembrei-me do piano, do corvo, do vestido, da boca rosa e do uísque, do rosto branco, das mãos suaves, do olhar terno, do veneno que ganhara certa vez de um homem que acabava com a vida como em um sono rápido e derradeiro, lembrei de muitas coisas.
Abri o vinho e o dividi nas duas taças, a minha taça e a de Alice. Ambas cheias de vinho quando cuidadosamente joguei todo o veneno na taça que era de Alice. Lembrei de uma linda música e voltei a passos rápidos para tocá-la.
O salão parecia mais escuro e mais frio, as lamparinas mais desgastadas, as janelas mais abertas. Augusto estava em pé diante dos livros que eu deixara separados, lendo algum deles, ainda por minha sorte longe de Alice.
Tomamos então o vinho entre as mesmas conversas de antes.

III


_Alice anda pálida, enjôos como já lhe disse, náuseas freqüentes, penso meu amigo que isso pode ser um bebê.
_Por Deus, que coisa magnífica! Presto-me a ser padrinho desde já se isso realmente acontecer.
Augusto abriu um sorriso verdadeiro ao me ouvir falar. Contei-lhe que tentara ligar para Elisabeth durante o tempo que fui buscar o vinho para que ela viesse e tentasse conversar com Alice.
_Ela não quer falar sobre isso comigo. Talvez tenha medo de criar expectativas. Mas talvez com outra mulher, com uma amiga como Elisabeth ela diga algo. Mas creio que Lisa já esteja a dormir. Não consegui falar.
Augusto levantou-se de imediato virando de uma vez todo seu copo de vinho e saindo do salão, me deixando a par de que estava indo buscar Lisa para uma conversa com Alice. Minha insistência para que isso fosse feito em outro momento de pouco adiantou.
E mais uma vez estava eu sozinho com minha Alice no enorme salão que eu passara tantas horas de minha vida. Assim voltei a tocar piano. Tocava a música que havia lembrado. O réquiem da ocasião.
Depois de alguns minutos me levantei do instrumento, sentei na escravinha que ficava ao lado da cama onde Alice jazia morta, dotei-me de um papel e uma caneta e coloquei-me a escrever o que você esta lendo nesse momento. Tentei ser rápido sem omitir detalhes que importam, e ainda estou a fazer isso.
Quando vier a terminar de escrever vou até Alice, talvez a beije mais uma vez. Vou deitar-me ao seu lado na cama, abraçá-la e dormir ao seu lado para sempre. Quando Augusto chegar vai encontrar minhas escritas. Talvez chore por mim, talvez chore por Alice, talvez pelos dois, talvez por si mesmo. Talvez chore por saber que a última vez que Alice tocou piano foi ao meu lado.

Sim, foi a última vez que tocamos piano.








Vila dos Contos - A Última Vez Que Tocamos Piano
de L.Stranger

domingo, 22 de janeiro de 2012

Lágrimas do Tempo, Sorrisos da Alma


         

por Laisa Soares Bezerra


      Moravam numa casa simples, longe do centro da cidade. Cultivavam uma horta, que era a sobrevivência da família.
      Stella corria e corria por entre as flores do jardim. Carregada de folhas no cabelo, ela voltava pra casa. E sua mãe, como sempre, tirava as folhas com todo cuidado para não desmanchar os cachos da menina. Era uma menina educada de olhos marcantes. Encantava e alegrava tudo a sua volta.
        - Lave as mãos, menina. Vamos jantar.
      Era a parte do dia que Stella mais se sentia segura. Ficava sentada a mesa com seu pai enquanto sua irmã mais velha ajudava a mãe a servir o jantar.
        - Teremos torta de maçã para sobremesa. – cochichou a irmã em seu ouvido.
Maçã era sua fruta preferida. Nunca achou que frutas combinassem com massas. Mas, aquele dia, ao morder o primeiro pedaço da torta, ela mudou de opinião. E todos os dias sua mãe a ouvia pedir a sua torta preferida. Torta de maçã.
         Os anos foram se passando, e Stella viu sua mãe falecer. Sem aguentar a dor da perda, meses depois, também, seu pai. Aos 23 anos, sua irmã, Alice, se casou com um rapaz da faculdade. Sabendo que, Stella, com 18, já era madura e responsável o suficiente para cuidar de si mesma, mandou-a de viagem para estudar.
         Stella encontrou Pedro, seu primeiro e único amor. Com quem se casou e teve 2 dois filhos. Uma linda e grande casa, seus filhos tinham de tudo, e ela tinha todo amor que merecia. Mas, toda noite, antes de dormir, Stella pensava em como gostaria que seus pais estivessem vivos desfrutando daquilo com ela.
Alguns meses após seu segundo filho ter nascido, Stella recebeu uma carta do marido de sua irmã, dizendo que ela falecera devido a uma tuberculose. Ficou pasma, e não falou com ninguém durante dias.
         Passaram-se anos e Stella viu seus filhos crescerem e sua vida envelhecer. Seu marido, embora não estivesse jovem como quando ela o conheceu, preservava o mesmo sorriso e afeto que a cativara.
         Lindos anos, não é, Dona Stella?
         Sentada em sua cadeira de balanço, deixou cair algumas lágrimas ao relembrar sua vida. Mas, logo deu conta de que não havia o que fazer, as coisas não voltariam. Levantou-se e foi tomar seus remédios. Afinal, era o que tinha que fazer. Continuar a viver, independente do que havia passado. Pois naquela casa, onde ela era sua própria companhia, ficaram os vestígios de lindos sorrisos e longos abraços. E, por mais que estivesse sozinha na vida, se orgulhava em lembrar e agradecia aos céus por tudo que teve.
        Naquela tarde, com o coração transbordando em recordações, Stella sentou-se na cama e pegou o álbum de fotografias. Percebeu que, com certa frequência, as pessoas iam desaparecendo de lá, mas, o sorriso das que ficavam era sempre o mesmo. Refletiu. Tomou seu último remédio, beijou a foto da família e sorriu. Era feliz, apesar de tudo. Deitou-se e dormiu. E, todas aquelas flores que deveria regar quando acordasse, murcharam e caíram sem vida.



Vila dos Contos - Lágrimas do Tempo, Sorrisos da Alma
de Laisa Soares Bezerra.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Pequena História Sobre Um Pirata


por Fábio Menezes




O jovem Nicolas observava o céu, enquanto o velho Jack preparava o drink do dia. Quando os dois estavam a sós, a enorme varanda que tinha vista para a bela piscina se transformavam num navio navegando, sem direção. Era uma noite fria de fim de outuno e ,segundo seus olhos e imaginação, o céu estava cheio de caras feias. 

  - Hey Marujo, amanhã no mesmo horário? 

  - Sempre Capitão. 

  - Lamento que se o acaso o atrapalhar para chegar a tempo, haverá uma pena. O senhor terá que andar na prancha marujo. Estamos entedidos? 
  Nicolas era um garoto magro, cheio de sardas na cara que sempre estava vestido igual: Calça preta e moletom vermelho. Seu mundo era um conto de fadas, e ele podia passar o dia inteiro (quase) somente com sua imaginação. A maioria de seus amigos eram imaginários.Bem mais legais que coleguinhas de escola, afinal. E, quem é que precisa de mais amigos quando se tem o capitão todas as tardes? A mãe de Nicolas frequentemente falava sobre Jack. "Meu pai brinca tanto com Nicolas com essa história de navio, capitão e não sei o quê que tá começando a ficar louco de verdade. O garoto pode viver com a cabeça no mundo da lua, mas não um velho . Não consigo mais falar sério com ele e isso acontece desde que minha mãe nos deixou. Porque diabos ele nunca consegue falar sério? " 
  O velho Jack, que na verdade era José, se refugiava tanto quanto Nicolas dentro de sua imaginação. Ninguém mais conseguia acreditar que sua saúde mental estava totalmente segura. Quando sua mulher morreu, não derramou nenhuma lágrima. Apenas ficou dias e dias isolado, e depois apareceu com um sorriso estampado no rosto, querendo ver cada vez mais o neto de apenas seis anos. De repente virou 'pirata'. Foram aparecendo cada vez mais fantasias, e acessórios de verdade como bussola, luneta e até uma pistola enferrujada. Isso parecia lhe curar a dor, mas começou a causar preocupação quando ele se retratava como capitão até mesmo quando o garoto não estava lá. Quando lhe era feita a pergunta: "Você está bem?" ou até mesmo "Você está louco?" ele apenas sorria. Havia largado a bebida há tempos, mas de vez em quando a mãe de Nicolas ainda procurava, em vão, vestígios de álcool pela casa. 
  Amigos inseparáveis, cada dia explorando mais esse dom da magia que há dentro de cada um de nós, avô e neto se divertiam o dia todo explorando ilhas no grande jardim, roubando carga de outros navios, tomando o velho e bom vinho (Que não passava de groselha). 
  Já era inverno. Nicolas observava as caras feias no céu novamente, mas dessa vez suas idéias estavam fixas nas dúvidas que sua mãe tinha sobre o velho Jack. Será que ele era mesmo louco? O garoto morria de medo de perder o grande capitão para a loucura, sabia que nunca encontraria amigo igual. Resolveu acreditar que seu avô não ficaria triste com a pergunta e resolveu dizer, finalmente: 
  - Vovô? 
  - Quem é vovô aqui marujo? Quer ser jogado aos tubarões?
  - Eu quero falar sério com o senhor. - Ao ouvir isso Jack abaixou um pouco os olhos e virou-se para o garoto. Sentou no banco ao lado. 
  - Bem... Diga meu rapaz. 
  - Mamãe sempre diz que acha que o senhor tá ficando caduco, perdendo a noção da realidade. Isso é verdade? 
  O velho Jack fitava o horizonte. Ficou em silêncio, alguns instantes. Sua cabeça estava pensando em coisas tristes, mas sua expressão era apenas de uma pessoa pensativa e nenhuma lágrima ameaçou embaçar sua visão. Ainda com os olhos longe, começou a falar. 
  - Sabe garoto... Minha vida foi muito feliz no geral. Mesmo não tendo conquistado todos meus sonhos, minha família tornou tudo muito feliz. Quando eu pensava ter chegado ao final, minha vida estava feita e eu continuava a sonhar. Uma tristeza repentina as vezes me visitava, trazendo saudade de quando eu era jovem e ainda podia correr atrás das coisas, mas logo passava. Até que sua avó me deixou... Eu não conseguia me conformar que estava nessa sem ela. Eu era um velho, sem a coisa mais preciosa que Deus já colocou em minha vida. Passado um tempo, eu percebi como conseguia deixar algumas tristezas de lado. As vezes deitava na cama e ficava imaginando que Dona Laura ainda estava comigo. Que estavamos viajando, mar a fora. O mar sempre foi minha paixão. 
  Ele ficou quieto, alguns segundos. Perdeu as palavras. Nicolas não conseguia dizer nada e lágrimas deslizavam sobre sua face. Jack, olhando no fundo de seus olhos, disse palavras que o garoto nunca conseguiu esquecer. 
  - O que eu estou tentando dizer meu garoto - E agora seus olhos não eram mais secos e brancos. - Tirando pouquíssimas coisas que eu tenho de verdade... Da realidade, pouco me interessa. 





Vila Dos Contos - Pequena História Sobre Um Pirata
de Fábio Menezes.